Nesse texto, abordaremos os seguintes tópicos:
- Introdução.
- Um sistema complexo e caro: como funciona a tributação atual.
- Conceitos do sistema atual: cumulatividade, base de incidência, tributação origem X destino, alíquota única X múltipla.
- A reforma deve trazer ganhos para a economia: impactos macroeconômicos.
- Impactos da reforma na bolsa: como ficam os setores?
A discussão sobre reforma tributária no Brasil está de volta aos holofotes e ao debate político e econômico no país, atraindo também a atenção de investidores. No dia 22 de junho, o relator da reforma tributária no Congresso apresentou o chamado substituto da PEC 45/19 – proposta de emenda constitucional para modificar o atual sistema tributária, apresentada originalmente em 2019.
De maneira resumida, a PEC propõe a simplificação do sistema de tributos incidentes sobre bens e serviços no país por meio da criação de um tributo de valor agregado. A proposta atual não trata de mudanças à tributação de renda (ou seja, se impostos como o IR e o JCP) – conforme proposto, essas serão tratadas em uma segunda etapa.
O interesse pelo tema por investidores é explicado não somente por seus efeitos econômicos, mas também pelo provável impacto em diferentes setores e, consequentemente, em ações de empresas negociadas por aqui.
Um sistema complexo e caro
Tentativas de reformar o sistema tributário brasileiro não são novidade.
Desde a promulgação da atual Constituição Federal (em 1988), todos os presidentes da República tentaram engatar alguma forma de reforma tributária no país. De maneira geral, todos fracassaram, ilustrando como o tema é árido na seara política brasileira.
Reflexo de um sistema altamente complexo e difuso, o Brasil figura na posição 184 dentre 190 países analisados pelo Banco Mundial em seu relatório sobre ambiente de negócios no quesito “pagamento de impostos”. O levantamento se baseia na contabilização do número de horas gastas por empresas pagando impostos no país.
De acordo com o relatório mais recente da instituição, uma empresa gasta em média o total de 1501 horas por ano mantendo-se “em dia com o fisco” no Brasil – comparado a 256 horas na também emergente Colômbia e 139 na “burocrática” França.
WORLD BANK DOING BUSINESS REPORT (2020)
Considerando apenas a tributação incidente sobre bens e serviços no país, os mais de 12 impostos somados a nível federal, estadual e municipal representam verdadeiros entraves à produtividade e competividade do setor produtivo brasileiro.
Isso porque a lógica e a estrutura de pagamento de impostos no Brasil tendem a levar à má alocação de recursos não somente entre setores, mas também entre estados e cidades, diante de incentivos muitas vezes distorcidos (como subsídios tributários). O sistema também contribui para a alta incidência de litígios e, em certos casos, até à inviabilidade financeira do negócio diante do alto custo envolvido no próprio cumprimento da legislação.
Além de tudo, a atual estrutura acabou tornando o sistema tributário brasileiro um sistema regressivo. Ou seja, no qual a parcela mais pobre da população acaba arcando com uma proporção maior da carga tributária sobre consumo no país.
Mas o que poderia efetivamente mudar com a aprovação de uma reforma tributária? Detalhamos abaixo os principais desafios do sistema atual e as principais mudanças propostas pela reforma sendo discutida no Congresso. Por fim, tratamos do impacto esperado para a economia brasileira e para os principais setores no país.
Imposto cumulativo X não cumulativo
Todo tributo [1] possui o que chamamos de regime de incidência. Esse regime define o modelo sobre o qual será feita a cobrança da alíquota desse tributo – ou seja, sobre o que ele irá incidir. Esse regime pode ser cumulativo ou não cumulativo.
No regime cumulativo, a alíquota será aplicada ao valor final da operação (a receita da venda do bem ou serviço) em cada uma das etapas, sem considerar quaisquer deduções de créditos fiscal. Exemplos de tributos cumulativos incluem o PIS/Cofins para empresas de lucro presumido e o ISS.
Já no regime não cumulativo, a tributação incide apenas sobre o valor adicionado em cada etapa da produção (daí a denominação de imposto sobre valor adicionado – IVA). Ou seja, para se definir o imposto devido, considera-se o valor de venda do produto (débito) menos o valor de aquisição dos insumos (créditos) utilizados no processo. No nosso sistema tributário, o IPI e o ICMS são considerados não cumulativos. Uma forma mais simplificada de cálculo do tributo é mostrada na tabela abaixo.
Apesar de mais simples, o regime cumulativo acaba sendo mais oneroso para a produção e para consumidores finais – ou seja, torna o produto mais caro. Isso porque o sistema não permite que sejam descontados créditos acumulados ao longo da produção – como, por exemplo, de um veículo. Essa dinâmica também incentiva empresas a produzirem tudo na cadeia de produção de um bem (o que chamamos de verticalização) para otimizar o pagamento de impostos, o que acaba trazendo ineficiências. Afinal, ninguém é bom em fazer tudo, certo?
Essa dinâmica também contribui para onerar mais produtos industriais do que serviços, uma vez que os primeiros incluem toda uma cadeia produtiva (pagando mais impostos ao longo). Assim, como famílias mais pobres tendem a consumir mais bens do que serviços como proporção da sua renda, o sistema torna-se mais regressivo – penalizando proporcionalmente mais os mais pobres.
Como fica na proposta: Seria criado um imposto de valor agregado (consolidando uma série de impostos), com a adoção do regime não cumulativo. Essa é a principal base da reforma.
Base de incidência ampla X específica
Hoje, grande parte dos impostos existentes no país incidem sobre bens e serviços específicos. Por exemplo, o IPI incide sobre bens industrializados, o ICMS sobre bens e alguns serviços, e o ISS sobre o restante dos serviços.
Isso, como você deve imaginar, aumenta bastante o nível de complexidade do sistema.
Como fica na proposta: A reforma tributária unificará esses tributos e deve ter base ampla, alcançando todos os bens e serviços consumidos.
Tributação origem X destino
A cobrança de tributos pode incidir onde determinado bem ou serviço foi produzido (o que chamamos de tributação na origem), ou onde esse bem ou serviço é consumido – a chamada tributação no destino.
A diferença, nesse caso, será o estado ou município que ficará com o valor arrecadado por esse tributo. Atualmente, grande parte dos impostos no Brasil possui tributação na origem.
Uma das principais consequências negativas da tributação na origem é que governos regionais podem oferecer incentivos fiscais (como cobrar menos impostos) para atrair investimentos, levando ao que chamamos de “guerra fiscal”.
Isso acaba favorecendo os estados que conseguem oferecer maiores benefícios para a instalação de empresas, alimentando um ciclo vicioso em que estados mais ricos acabam por atrair mais empresas e aumentar sua arrecadação. A dinâmica contribui para a desigualdade regional no país e má alocação de recursos (dinheiro indo para onde não necessariamente seria mais produtivo, e sim onde pagará menos impostos).
Como fica na proposta: Seria adotado o princípio da tributação no destino. Para mitigar os efeitos diante de benefícios que já existem, a proposta pretende criar o Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR) para estados e municípios, a ser financiado pelo governo federal.
Alíquota única X múltiplas
Outro aspecto importante de um sistema tributário é quantidade de alíquotas. Ou seja, todo bem e serviço deve pagar uma porcentagem igual de determinado imposto, ou isso vai variar?
Em geral, menos alíquotas significam um sistema mais simples e transparente, além de menos distorções nos preços relativos da economia.
Isso não significa que alíquotas diferenciadas não devem ser utilizadas em nenhum contexto. Pelo contrário; cobrar alíquotas mais altas de produtos nocivos à saúde (como cigarros), ou menos de serviços de educação e saúde são estratégias usadas em diversos países.
Porém, o caso brasileiro está longe do ideal. Embora PIS/Cofins tenham alíquota única (com exceções), IPI, ICMS e ISS têm tabelas próprias com alíquotas específicas para cada bem ou serviço produzido, que dependem de uma série infindável de características.
Para se ter uma ideia, o sistema permite que uma mera mudança na embalagem torne o produto muito mais barato – tornando um bombom (com 3,25% de alíquota) em um wafer para zerar a alíquota incidente.
Como fica na proposta: o objetivo central é simplificar o sistema criando uma alíquota de referência, aplicável a bens e serviços em geral – com exceções para setores como saúde, educação e transporte de um lado, e maiores alíquotas para desincentivar o consumo de produtos nocivos à saúde ou meio ambiente, do outro.
Resumindo: o que muda com a reforma?
Como falamos acima, a PEC que está sendo discutida hoje no Congresso trata de tributos sobre bens e serviços. O objetivo central dela é resolver os problemas apontados acima.
Assim, a PEC propõe a criação de um novo tributo para substituir o PIS/Pasep, Cofins, IPI, ICMS e ISS, dividido em duas partes: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), administrado pelo governo federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), administrado por Estados e Municípios.
Tanto o IBS quanto o CBS terão base ampla (todos os bens e serviços), serão não cumulativos (a base será o valor adicionado em cada etapa da cadeia produtiva), com no máximo três alíquotas (referência, reduzida – 50% da alíquota de referência – e zero) e tributação no destino.
Vale dizer que os percentuais das alíquotas serão discutidos em lei complementar – ou seja, depois da aprovação da PEC. O texto também prevê a devolução de imposto por cashback (ou seja, o dinheiro de volta de alguns impostos, provavelmente relacionados à produtos da cesta básica), mas que também deve ser definido em outra legislação.
A transição proposta para o fim dos cinco tributos será de oito anos, de 2026 a 2033. Já a transição da distribuição da arrecadação, para evitar perdas para alguns estados, seria de 50 anos, de 2029 a 2078.
Finalmente, é esperado que uma segunda fase da reforma tratando da tributação da renda seja discutida nos próximos meses. Impostos discutidos nessa segunda etapa devem incluir: Imposto de Renda (IR e IRPJ), impostos sobre patrimônio e impostos sobre capital.
A reforma deve trazer ganhos para a economia
Diante do cenário altamente complexo e custoso descrito acima, a aprovação de uma reforma tributária que simplifique o atual sistema, alinhando a estrutura com as melhores práticas internacionais, tem o potencial de trazer impactos bastante positivos para a nossa economia no longo prazo.
Uma série de estudos realizados até o momento reforçam esse argumento. Em geral, as estimativas indicam crescimento adicional de 12% (0,76% ao ano) a até 20% (1,22%) em 15 anos, considerando-se apenas os efeitos diretos da mudança [2].
Em termos setoriais, os impactos seriam mais positivos para a indústria, que poderia crescer até 25% acima do cenário sem reforma em 15 anos, mas agricultura e serviços também seriam beneficiados.
Há também efeitos indiretos da reforma tributária. Com um crescimento econômico maior, a arrecadação tributária tende a crescer mais e nosso nível de endividamento em relação ao PIB cair. Esse cenário contribuiria para reduzir o risco-país e a taxa de juros de longo prazo. Além disso, efeitos indiretos tendem a reforçar o crescimento da economia, já que reduzem o custo de captação de recursos para investimentos.
Ou seja, apesar de impactos potencialmente negativos no curto prazo para determinados setores/empresas – que terão que se adaptar as novas regras – tudo aponta que os efeitos de longo prazo de uma reforma tributária serão benéficos ao país.
Impactos da reforma na bolsa: como ficam os setores?
Com base nas informações divulgadas até agora, destacamos abaixo alguns potenciais impactos da reforma em setores negociados na bolsa brasileira — tudo de forma ainda preliminar, é bom lembrar.
Para a maioria dos setores, a grande mudança será a consolidação de diversos tributos pagos ao longo da cadeia de produção em apenas dois: o CBS e o IBS. A redução na complexidade deve ajudar as empresas a abater os impostos pagos na cadeia de produção e a receber de volta o valor devido (como acontece na restituição do Imposto de Renda para nós pessoas físicas).
Mas, como falamos, alguns setores estão sujeitos a possíveis alíquotas diferenciadas, devido à sua linha de atividade. Ou seja, pagarão menos ou mais do que a alíquota principal do IBS e do CBS. Isso será feito por meio de um Imposto Seletivo (ISE).
Empresas de Transportes, Mineração e Siderurgia, e Petróleo, Gás e Petroquímicos, por exemplo, podem ser determinadas a pagar um Imposto Seletivo adicional por exercerem eventualmente atividades que são prejudiciais ao meio ambiente. Produtores de bebidas alcóolicas também pode pagar um imposto específico por seu produto ser prejudicial à saúde.
Já os setores de Saúde e Educação, por outro lado, devem ter tratamento diferenciado para diminuir o impacto das alterações da reforma nas isenções atuais dessas empresas.
Vale notar que os setores de Agronegócio e Alimentos atualmente são beneficiados por isenção de parte dos impostos em produtos da cesta básica, e a atividade rural tem isenção em insumos como sementes e fertilizantes. Mudanças nessas isenções afetariam empresas desses setores.
Atualização em 10/07/2023: O texto da reforma aprovado na Câmara dos Deputados em 07/julho estabelece a criação de uma Cesta Básica Nacional de Alimentos, que terá alíquota zero no novo sistema tributário. A definição dos produtos que irão compor esta cesta deve ser feita depois da aprovação da reforma pelo Senado, em lei complementar.
Por último, as exceções.
O setor Financeiro não deve entrar no novo modelo tributário com base no IVA e ter um tratamento diferenciado, diante da complexidade na apuração e diferenciação entre operações de crédito e serviços de intermediação financeira. Ou seja, esperamos que o setor não enfrente grandes alterações no comparado com o modelo de tributação atual.
Já o setor Imobiliário é muito heterogêneo (envolvendo modalidades como aluguéis, compra e venda, incorporações, construção civil, loteamentos, administração etc.), e não acomodaria bem um tratamento único. Por isso, ele também está entre as exceções previstas no projeto da reforma.
Finalmente, vale destacar que já foram levantados questionamentos sobre o pagamento de JCP. Ressaltamos que essa discussão deve ser tratada só em uma 2ª fase da reforma tributária, quando o assunto principal serão os impostos sobre renda e patrimônio.
Notas
[1] O conceito de tributo engloba impostos e contribuições. Os impostos são calculados a partir de uma porcentagem e não tem vinculação específica. Já as contribuições são valores destinados para um fim específico. Por exemplo: o IPTU e o IPVA são impostos cobrados de acordo com o valor do patrimônio. Já as contribuições têm uma finalidade específica, como o financiamento da Seguridade Social, a exemplo do PIS e da COFINS.
[2] Cardoso. D. F. e Domingues, E. P. Nota Técnica: Simulações dos impactos macroeconômicos, setoriais e distributivos da PEC 45/2019
Borges. B. Impactos macroeconômicos estimados da proposta de reforma tributária consubstanciada na PEC 45/2019.
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